Duas decisões do fim do ano passado, uma tomada em Roma e outra em Brasília, ameaçam instalar uma crise inesperada no governo Lula. Trata-se de duas determinações da Justiça que obrigam o governo a fazer um ajuste de contas, que tentou a todo custo evitar, com o passado: a expedição, pela Justiça italiana, de mandados de prisão contra 13 brasileiros supostamente integrantes da Operação Condor, espécie de multinacional da repressão no Cone Sul, e uma determinação do STJ para que o governo investigue, abra arquivos militares e informe a localização dos corpos dos desaparecidos na guerrilha do Araguaia.
Ao contrário do que ocorreu em outros países da região, como na Argentina, nenhum dos governos civis do Brasil, desde a redemocratização (1985), se dispôs a ordenar a abertura de arquivos da repressão militar e a entrega dos corpos dos desaparecidos no Araguaia. O governo Lula teve a oportunidade em mãos, em meados do primeiro mandato, mas preferiu contornar o problema por receio de uma crise com os militares. O assunto que balizou o comportamento do governo foi a guerrilha do Araguaia, que agora está de volta com decisão transitada em julgado, definitiva, do Superior Tribunal de Justiça.
À época, a Justiça Federal de Brasília determinou um prazo de 120 dias para que a União indicasse o paradeiro dos desaparecidos no Araguaia. Foi uma decisão dura. Além de indicar a localização dos corpos, impôs a "quebra do sigilo das informações militares relativas a todas as operações realizadas no combate à guerrilha do Araguaia".
A fim de evitar respostas previsíveis, como a inexistência de arquivos, a Justiça determinou também que, "sendo necessário", o governo usasse 60 dos 120 dias para proceder a "rigorosa investigação, no âmbito das Forças Armadas, para construir quadro preciso e detalhado das operações realizadas (...), devendo, para tanto, intimar para prestar depoimento todos os agentes militares ainda vivos que tenham participado de quaisquer das operações".
O advogado que assinara a ação contra a União, Luiz Eduardo Greenhalgh, era então deputado federal, presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara e muito próximo do presidente e do governo que acabara de se instalar. Greenhalgh supunha que o governo tinha a desculpa perfeita para cumprir a sentença: fora uma decisão do Judiciário e Lula e o PT não tinham como ser acusados de tentar abrir uma crise com os militares. Além disso, considerava que Lula tinha a obrigação de levar o assunto adiante, por chefiar um governo que entre outras pessoas tinha um ex-banido na Casa Civil (José Dirceu) e uma ministra como Dilma Rousseff (à época nas Minas e Energia), presa e torturada no regime militar.
O então todo poderoso chefe da Casa Civil, José Dirceu, convocou uma reunião para tratar da decisão judicial. Além dele, Dirceu, participaram Márcio Thomaz Bastos, ministro da Justiça, Álvaro Augusto Ribeiro, advogado geral da União, e Nilmário Miranda, secretário de Direitos Humanos, além de Greenhalgh, que presidia a CCJ da Câmara. Dirceu foi bem específico: Álvaro Augusto deveria recorrer da decisão
A orientação foi apoiada por Thomaz Bastos e Álvaro Augusto Ribeiro, Nilmário tergiversou e Greenhalgh protestou e questionou o ex-ministro sobre os motivos da decisão. "Razões de Estado", limitou-se a responder Dirceu. O diálogo entre os dois foi ríspido e o advogado disse que iria falar com Lula. Dirceu então afirmou que já falara com o presidente e que a decisão era dele, Luiz Inácio Lula da Silva.
A AGU recorreu e perdeu no STJ, no fim de 2008. O tribunal mudou apenas o encarregado de executar a decisão: em vez do Tribunal Regional Federal (TRF), a 1ª Vara criminal Federal de Brasília. Os autos devem ser encaminhados ao juiz de primeira instância provavelmente em fevereiro, quando começa a contar o prazo de 120 dias. Todos os demais termos da sentença foram confirmados pelo STJ, inclusive a parte que diz que incorrerá "em desobediência" a autoridade que não atender à decisão.
Um episódio curioso ocorreu em 2003: ao mesmo tempo em que o governo decidia recorrer da sentença sobre os desaparecidos do Araguaia, os participantes da reunião no gabinete de José Dirceu (à exceção de Greenhalgh), o vice-presidente José Alencar, à época ministro da Defesa, e os comandantes militares pediram um habeas corpus preventivo ao Supremo para não serem considerados "em desobediência" à sentença judicial.
Trata-se de uma condição a qual os novos titulares dos cargos estão agora novamente sujeitos. A questão da repressão no regime militar está reaberta, seja pela Operação Condor - cujas investigações foram desencadeadas em Roma para apurar o desaparecimento de ativistas com cidadania italiana -, seja pela dos desaparecidos do Araguaia.
Ao receber o pedido da Itália, Tarso Genro já informou que mandará investigar as acusações. Além disso, o senador Cristovam Buarque pretende convocar à Comissão dos Direitos Humanos o general da reserva Agnelo Del Nero Augusto, que em entrevista reconheceu a participação dos militares brasileiros na Operação Condor. "A gente não matava. Prendia e entregava", disse Del Nero a "O Estado de S. Paulo".
De Del Nero a outros oficiais seria um passo. Ou seja, crise. A solução poderia ser algo como a Comissão da Verdade, na África do Sul pós-apartheid. Uma comissão para passar a limpo o processo repressivo no Brasil, não punir ninguém, pela prescrição, e virar de vez uma página da história.