23 de janeiro de 2008

O gigante tremeu


O gigante tremeu, piscou, e não esperou um dia mais para acusar o golpe da reação adversa dos mercados às iniciativas anunciadas para frear os sinais de recessão nos EUA. Depois da segunda-feira negra para as bolsas em todo o mundo, ficando de fora apenas as dos EUA beneficadas pelo feriado em memória de Martin Luther King, seguido de quedas ainda piores na terça asiática, quando a Bolsa de Xangai desabou 7,2%, a de Mumbai, Índia, chegou a ser fechada quando caía 10% e a de Tóquio afundou 5,5%, o Federal Reserve, banco central dos EUA, acordou cedo travestido de bombeiro.

Numa decisão extemporânea horas antes da abertura das bolsas de Nova York e da Nasdak e a oito dias de sua reunião regular para examinar a situação dos mercados e da economia e indicar a taxa do Fed Fund, equivalente à Selic, para fevereiro, o Federal Reserve anunciou o corte de 0,75 ponto de percentagem do juro básico — o maior desde outubro de 1984 —, e não escondeu a sua inquietação.

A deterioração da economia nos EUA é real. Na nota explicativa, a direção do Fed, presidida pelo economista Ben Bernanke, justificou o corte fora de época pelo “aumento dos riscos para o crescimento” econômico e o “enfraquecimento das projeções da economia”.

Embora, segundo a nota, a consolidação das dívidas flutuantes de curto prazo tenha melhorado, as condições no mercado financeiro em geral “continuam se deteriorando”, apertando o crédito para alguns setores empresariais, incluindo o de imóveis — epicentro da crise bancária nos EUA, que também respingou na Europa, desde o estouro da bolha de especulação com hipotecas em julho passado.

A iniciativa apressada do Fed foi interpretada como sinal de que os desdobramentos adversos da crise financeira serão enfrentados com artilharia pesada, como a redução do juro básico de 4,25% para 3,5%, e já se especula outro corte, de 0,25 a 0,5 ponto percentual na reunião do Comitê de Mercado Aberto, o Copom deles, dia 30. Foi uma medida forte, que recolocou a Bovespa em alta e deteve a queda do real. Mas nas bolsas européias, depois de oito dias de queda batida, o impacto foi menor, com a recuperação não chegando a se reverter em alta em algumas praças.

O juízo que se vai alastrando entre os estrategistas dos mercados financeiros e os analistas da economia real é que os tempos atuais tendem para uma recessão nos EUA e Europa e desaceleração forte na Ásia e algumas economias emergentes, podendo aí estar o Brasil.

Bancos das sombras
A intensidade do ajuste e a sua duração estão em aberto. Eles vão depender do tempo para o preço dos ativos reais inflados por uma condição de mercado que deixou de existir — crédito farto e risco desprezado, como imóveis nos EUA e em alguns países europeus, tipo Espanha, Irlanda e Inglaterra — se reduza até se enquadrar à nova condição de liquidez restrita e seletiva para aplicações de risco.

Em paralelo, aguardam-se providências dos xerifes do mercado no sentido de aferir e atestar a situação real de solvência da banca, já que continua e até se ampliou a desconfiança de que haja o que se cunhou de “shadow banking system” — um outro sistema bancário operando nas sombras pela própria banca formal, para carregar uma parte dos papéis que emitiu à margem dos órgãos de fiscalização.

Dúvida de trilhões
Fundos e sociedades de propósito especial, chamadas de SIV, foram criados para desempenhar tal papel. Alguns bancos, como Citibank e HSBC, sem reconhecer formalmente essa prática, admitiram como de sua responsabilidade o resgate de papéis em poder de fundos e SIVs supostamente externos. A dúvida é se há mais micos escondidos das contabilidades formais da banca num mercado em que os derivativos de contratos de dívida e de transações com títulos financeiros e moedas passam a estonteante cifra de US$ 140 trilhões.

Paralelos com 1929
Esse é o impasse real, contra o qual medidas fiscais para aliviar devedores inadimplentes com hipotecas, como anunciou o presidente Bush, e o corte de juros do Fed ajudam, mas não resolvem. Como diz o ex-executivo do Federal Reserve de Atlanta Bob Eisenbeis, o que está em causa é a solvência da banca, que se resolve com admissão das perdas e escrituração das baixas, não com “adições de capital novo para evitar o reconhecimento dos prejuízos”. Assusta que esse seja o mesmo motivo que agravou a grande depressão de 1929.

Lá também se quis tapar o mau cheiro dos títulos apodrecidos, que por sua vez resultavam da longa licenciosidade creditícia da banca — causa da inflação de ativos. Como se constatou então, não há só inflação de preços de mercadorias e serviços, mas também de papéis financeiros quando dívidas são contraídas com facilidade graças ao relaxamento de restrições monetárias, a déficits públicos fiscais, à ganância do sistema bancário e à cobiça dos investidores.

Os EUA estão perto desse raro fenômeno econômico, que foi mortal para a economia mundial no fim dos anos 20 e início dos 30 e fez tombar o Japão depois de 1990, abrindo a longa noite de estagnação da qual não se recuperou bem até hoje. Nos dois casos, a deflação dos ativos de dívida foi exaurindo a capacidade de empréstimos da banca, que contrai a atividade econômica quanto mais tempo durar o processo de ajuste. É desse pesadelo que os EUA lutam para fugir.

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